Cruzar fronteiras - Da Jordania para a Siria

Cruzar uma fronteira terrestre e sempre algo fascinante, que me enche de sentimentos diversos. Uma fronteira, e certo, e sempre algo artificial, ainda para mais em paises cujos limites foram muitas vezes tracados a regua e esquadro, por potencias estrangeiras olhando para os seus proprios interesses (por vezes apenas a curto prazo), mas nao se importando com o futuro desses territorios.

Mas a verdade e que essa linha, por mais artificial que seja, divide actualmente dois paises soberanos, com historias e identidades diferentes. A adrenalina sobe com as expectativas e o coracao bate mais depressa. Como sera do outro lado? Neste caso, a lingua e o terreno fisico sao iguais, mas e o resto?
E preciso tambem trocar dinheiro, abandonando o Dinar Jordano pelas Libras Sirias. Olhar para as notas e moedas, tentar reconhece-las dobradas na carteira e familiarizar-me com o cambio.

E preciso um visto de entrada para cidadaos portugueses, mas como nao temos embaixada da Siria em Portugal, resolvemos arriscar e tentar obter o carimbo no passaporte na fronteira. Sera que conseguiremos?

Sao estas algumas das perguntas que me fazia, conforme nos aproximavamos da fronteira, num carro alugado ("service taxi"), na companhia de mais um passageiro. E um rapaz novo, talvez a volta de trinta anos. Tanto ele como o condutor nao falam Ingles, por isso a comunicacao entre nos e quase nula. Dizemos que somos de Portugal, e eles brincam dizendo os nomes de Figo e Cristiano Ronaldo. Estes sao o nosso ponto de contacto entre culturas, quando nada mais parece resultar. A dada altura, quando paramos nos servicos de fronteira jordanos e olhando para o seu passaporte, consigo ver que o nosso companheiro de viagem e de nacionalidade iraquiana... Seguimos para a parte siria da fronteira. Afinal corre tudo muito bem, os nossos vistos sao praticamente automaticos e em cinco minutos estamos despachados. O nosso companheiro nao tem tanta sorte. Acompanhado do condutor, anda de um lado para o outro, espera sentado, fala com os oficias de fronteira, volta a sentar-se. Nao esta facil... Apos cerca de meia hora, parece que os problemas se resolveram e seguimos viagem, passando ainda pelo controlo de bagagem. Partimos entao em direccao a Damasco, a pouco mais de 100km de distancia. Olho em redor, e tudo parece igual ao que acabei de deixar para tras. A minha atencao recai sobre o nosso companheiro. Qual sera a sua historia? Desde a intervencao dos EUA no Iraque, a Siria ja recebeu cerca de um milhao e meio de refugiados iraquianos. Com o passar do tempo, e o degradar das condicoes sociais e economicas da sua maioria, o governo sirio exige agora uma renovacao de visto de permanencia de tres em tres meses, com saida obrigatoria do pais e posterior reentrada. Sera que o rapaz a minha frente e um deles? Nao consigo deixar de pensar que nos une mais do que conhecermos Figo e Cristiano Ronaldo. Nao consigo deixar de pensar que Portugal foi o anfitriao da infame Cimeira dos Acores, em 2003, em que Durao Barroso recebeu Bush, Blair e Aznar, para darem a conhecer ao mundo que vinha ai o que ja se esperava, a invasao do Iraque, ainda que fundamentada em argumentos que algumas pessoas sabiam, e todos os outras suspeitavam, serem falsos. A guerra comecaria tres dias mais tarde.

Portugal e o futuro Presidente da Comissao Europeia ficaram, desta forma, para sempre ligados a esta decisao, de consequencias hoje bem conhecidas. Apetecia-me falar com aquele homem, fazer-lhe perguntas, ouvir o que ele tinha para contar. Mas nao era possivel. Que poderia dizer? "Figo, Cristiano Ronaldo and... Azores meeting!" Nao... Fiquei em silencio, pelo desconhecimento da lingua, mas sobretudo pela vergonha do que o meu pais fez em relacao a patria do meu companheiro de viagem. Quando nos separamos em Damasco, a entrarmos para taxis diferentes, dissemos "salaama" e ele sorriu em resposta. Que tenha paz no seu futuro. Inshallah!

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